sábado, 28 de abril de 2012


Fotografei-te num dos velórios dos meus sonhos.
Tornou-se isto o meu quotidiano,
a romaria tradicional às minhas pequenas mortes.
Felizmente que são sempre outros rostos
 a sepultar-me com salmos diferentes.
Sinto-me muitos e popular,
com vários nomes registados no cartório
 à revelia do pai.
[mas todos filhos da puta.]
 
 Se pudesse existir um mercado funerário
 só para as minhas ilusões,
 deixaria de sonhar
para me poupar à vergonha
de pagar para enterrar os meus ensaios nulos.
 Morrer é caro e eu não daria um tostão
para ocupar a terra com derrotas.
 
Nem me disseste adeus.
Nunca quiseste saber qual era a minha esperança média
 de morte.
Foste só mais uma voz no coro
 a entoar um requiem,
ou a rezar o terço com a boca cheia de devoção.
Mas devo-te o reconhecimento do mérito:
 foste a primeira, e serás a última,
a dizer graças a deus quando recebias a minha  unção.

[Cheguei a acreditar que era um Eleito.
 Só mais tarde soube que eras missionária de uma religião universal.]

De resto, foste só mais uma oração
que serei obrigado a esquecer
 para nunca deixar de acreditar
na falsa salvação que se segue.
 
Nos meus lábios,
os teus beijos cumprem pena de prisão domiciliária.
É esta a medida de coacção a que fui sujeito
desde que cometi o crime de te beijar.
Se me perguntarem,
 direi que amar-te está em segredo de injustiça.

VS

sexta-feira, 20 de abril de 2012

a forma erudita

poderia ser um ofício, isto.
o ruído que trago à palavra ruína.
sei que nos bordeis de deus
há outras políticas de desmoronamento
[como o ritual de viajar com o teu corpo
para paraísos oncológicos],
mas deus não passa recibo
quando se arrenda o inferno.


inútil, o ónus.
não se sai ileso de uma mulher de fundo.
o tesão de deus são as doenças com gargalo
e as tuas ancas são o único bar aberto
na teúrgica escatologia do amor.
é uma questão de fuligem.
e eu caio de boca,
como quem comunga o estrago,
ou não fosse a vertigem
uma forma educada de assediar os tumores.


é de ti que eles falam.
os cancros.
deitam-se contigo,
em campanha eleitoral pelo corpo,
abrindo vagas para tempero
no seu estojo de óbitos.
seguram-te o cabelo,
enquanto vomitas o esperma do jantar
[e os últimos meses de vida],
mas não te perdoarão a audácia do socorro.


é esta a tua ribalta.
uma ogiva com tenores a prazo.
também eu pagaria para morrer
mas nem para morrer sirvo.
dopamos os dias com amigos decorativos
e instruções para abate,
na sua forma erudita,
e eu não sei em que coldre
devo estacionar os retalhos.


nós nunca nos matamos a tempo.


mas nunca é tarde para se ser infeliz.

DT

sábado, 14 de janeiro de 2012

idealizo-te
na tua colheita diária
de fantasmas

despedaçados
pelas hélices centrípetas
do teu útero

[um bater de asas de libelinhas
- imaginas tu -
ou mil suspiros
dos teus lábios sem cuidados]

no final tens
- ao contrário do que sabes -
escombros espectrais
que a tua menstruação
não dissolve

DV

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

a ferida de haveres

doer, creio,
faz hoje um ano.
esse verbo apócrifo,
cujo gerúndio gestas e tão bem ocupas,
é a única derrota potável
no meu catálogo de relentos.
o saber-me dano.


sem redor,
a perda vem então aos pares.
a isto chamo eu ternura
[ter os mortos em duplicado],
perdendo apenas para não desafinar
a esperança de voltar a perder.
eis a proposta do desmancho.
porque a bater por defeito
está um coração obrigatório,
à escala natural,
rodando no peito os capitais
do seu vazio.


doer é uma arte.
é, como não estar,
a morte magra de viver cheio de gente.
uma forma de aderir à ferida de haveres,
agora com ensaios a mais,
onde amotino os venenos
à inflação do amor.


a mágoa urge.
individualiza a carne,
primeiro,
depois nem isso.
o sudário dos lábios.
a múmia de um beijo
sem boca onde gretar.
executamos o que estamos sós.


haja destino.
avesso.
um breve travo a cianeto
antes de fechar os olhos.


passa já da minha hora de saída
deste poema.


e da vida também.

DT